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terça-feira, 16 de outubro de 2012

Eu, etiqueta


Em minha calça está grudado um nome 

que não é meu de batismo ou de cartório, 
um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
que jamais pus na boca, nesta vida. 
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produto 
que nunca experimentei 
mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
de alguma coisa não provada 
por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
minha gravata e cinto e escova e pente, 
meu copo, minha xícara, 
minha toalha de banho e sabonete, 
meu isso, meu aquilo, 
desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
são mensagens, 
letras falantes, 
gritos visuais, 
ordens de uso, abuso, reincidência, 
costume, hábito, premência, 
indispensabilidade, 
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É doce estar na moda, ainda que a moda 
seja negar minha identidade, 
Trocá-la por mil, açambarcando 
todas as marcas registradas, 
todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
eu que antes era e me sabia, 
tão diversos de outros, tão mim-mesmo, 
ser pensante, sentinte e solidário 
com outros seres diversos e conscientes 
de sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio, 
Ora vulgar ora bizarro, 
em língua nacional ou em qualquer língua 
(qualquer, principalmente). 
E nisto me comprazo, tiro glória 
de minha anulação. 
Não sou – vê lá – anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
para anunciar, para vender 
em bares festas praias pérgulas piscinas, 
e bem à vista exibo esta etiqueta 
global no corpo que desiste 
de ser veste e sandália de uma essência 
tão viva, independente, 
que moda ou suborno algum compromete. 
Onde terei jogado fora 
meu gosto e capacidade de escolher, 
minhas idiossincrasias tão pessoais, 
tão minhas que nos rosto se espelhavam, 
e cada gesto, cada olhar, 
cada vinco da roupa 
resumia uma estética? 
Hoje sou costurado, sou tecido, 
sou gravado de forma universal, 
saio da estamparia, não de casa, 
da vitrina me tiram, recolocam, 
objeto pulsante mas objeto 
que se oferece como signo de outros 
objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
de ser não eu, mas artigo industrial, 
peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é coisa. 
Eu sou a coisa, coisamente. (Carlos Drummond de Andrade)


Assista ao vídeo:

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